Uma Visão Contemporânea de Marília de Dirceu Texto sobre a escultura Marília de Dirceu

Mário Margutti
jul. 2011
Ouro Preto, MG Tomáz Antônio Gonzaga Inauguração de escultura Marília de Dirceu

“A menina-moça Maria Dorotéa Joaquina de Seixas foi o grande amor do poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga. Adepto do estilo literário do Arcadismo, Gonzaga projetou seus sentimentos em duas figuras idealizadas: batizou a amada com o nome pastoral de Marília e, denominando a si próprio Dirceu, dedicou-lhe versos fluidos, de emocionada ternura. Seu poema Marília de Dirceu, publicado em Lisboa no ano de 1792, tornou-se a lírica amorosa mais popular da literatura em língua portuguesa.

Inspirado por fantasias bucólicas, Gonzaga comparava sua amada às belezas naturais e às divindades da mitologia greco-romana: “A minha amada é mais formosa que branco lírio, dobrada rosa, que o cinamomo, quando matiza co’a folha a flor. Vênus não chega a meu amor”.

Na sua liberdade poética, Gonzaga ora descreve sua amada como loira (“os teus cabelos são uns fios d’ouro”), ora como morena (“os seus compridos cabelos, que sobre as costas ondeiam, são que os de Apolo mais belos, mas de loura cor não são”). E o fato é que até hoje não se sabe que rosto tinha Maria Dorotéa. A versão morena prevaleceu na história, e dessa forma ela foi retratada por ilustradores de capas de livros, que lhes deram um rosto imaginário. Guignard a pintou menina-morena, de olhos cândidos, face pálida e lábios muito vermelhos, o crucifixo ao peito, como um doce espectro a flutuar sobre a paisagem de Ouro Preto.

Agora, em abril de 2011, atendendo a uma encomenda do prefeito Ângelo Oswaldo, o escultor Evandro Carneiro nos oferece uma visão inesperada e instigante de Marília. Trata-se de um busto eternizado em bronze, de grande carga simbólica, modelado numa ótica surrealista.

Evandro vivenciou todos os desafios inerentes a este trabalho. Que face teria Marília, essa mulher que é puro mistério nos ventos da história? Como dimensionar a sua dor, sabendo-se que ela foi brutalmente separada do amado (o poeta foi exilado para a África) e a quem ela permaneceu fiel, sem nunca ter-se casado? Com que roupa de época vesti-la? Como seguir as indicações dadas pelo poeta sobre o olhar de sua amada (“os teus olhos espalham luz divina, a quem a luz do sol em vão se atreve”)?

Evandro imaginou sua Marília de cabelos longos, cobertos por véu, um discreto decote no colo. O recato da histórica personagem foi assim, claramente dimensionado. Começa, então, a viagem onírica: o artista imaginou a face desconhecida de Marília atrás das janelas gradeadas típicas da arquitetura de Ouro Preto nos tempos coloniais. Assim, ao invés de um rosto, Marília ganhou uma máscara de ferro, semelhante às que eram dadas aos prisioneiros que, além de encarcerados em masmorras, eram também condenados ao eterno anonimato. Com essa solução formal, ele compôs uma metáfora de Marília prisioneira de seu tempo, encarcerada principalmente em sua condição feminina. Ao invés de uma face bela e delicada, o escultor nos oferta uma máscara do sofrimento, do exílio amoroso, da prisão no celibato e nos costumes opressivos do Brasil Colônia.

O rosto propriamente humano de Marília foi modelado pelo escultor na... parte de trás da cabeça do busto! Como uma espécie de face oculta, que simultaneamente preserva e revela o mistério do rosto desconhecido da musa do poeta. Assim o escultor compôs uma metáfora visual da mulher que só chega até nós na versão idealizada dos versos de Gonzaga. Numa lírica surrealista, Evandro desloca as regras e rotinas da arte figurativa, para provocar estranheza, para fazer o observador pensar, convidando-o a mergulhar no mistério dessa mulher que, de tão idealizada, só pode ter seu rosto esculpido pelo inesperado, pelo mais puro improviso. A antiga lírica pastoral do poeta Gonzaga é transformada, assim, em visualidade de arte contemporânea.

O prefeito Ângelo Oswaldo viu nessa dupla face da Marília esculpida por Evandro uma ressonância de uma antiga divindade da mitologia romana. Escreveu ele: “Como Janus[1], tem duas cabeças: a máscara da mulher apartada do amado e da liberdade impossível e o rosto diáfano do devaneio da pastora no sonho da Arcádia”. E assim aprendemos que Marília é muitas: é musa, é mistério, é sonho, é mulher amada...

Para homenagear o amor sofrido do poeta pela mulher que ele não pôde ter, Evandro fixou em seu busto a figura de um pássaro. É uma referência ao “sonoro passarinho” que, num poema, Tomás Antônio Gonzaga enviou mentalmente para Ouro Preto para saudar Marília em seu nome, quando ele já estava encarcerado numa prisão na Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro.

Outra dimensão simbólica muito especial dessa escultura é o oco que Evandro inseriu na altura do coração da personagem Marília. Assim o escultor constrói uma metáfora visual do vazio da solidão à que a pobre Marília foi condenada, pelo exílio imposto ao seu amado poeta, que simultaneamente a condenou ao exílio da saudade eterna e sem remédio.

Esse oco também é uma referência às efígies sacras, aos antigos bustos-relicários das igrejas barrocas de Minas Gerais, como os que Aleijadinho criou para o Santuário de Congonhas. Com esse recurso plástico, Evandro expressa com grande potência poética o abandono em que Marília mergulhou – e até mesmo a sublimação do seu sofrimento, simbolicamente figurado pela metafórica transformação do coração de Marília em abrigo de uma relíquia. E assim emerge a ideia – romântica por excelência – de amor infinito, que transcende os percalços da nossa vida terrena.

Suporte de jogos simbólicos que podem ter muitas outras interpretações, a Marília de Evandro Carneiro é uma escultura avessa ao óbvio, que nos convida a penetrar nos mistérios da História, à floração de sonhos emocionados e à reflexão aguda sobre a faceta trágica e heróica dos relacionamentos amorosos.”

[1] Jano (em latim Janus) foi um deus romano que deu origem ao nome do mês de Janeiro. Era o porteiro celestial, sendo representado com duas cabeças, representando os términos e os começos, o passado e o presente. De fato, era o responsável por abrir as portas para o ano que se iniciava; e como toda e qualquer porta, se volta para dois lados diferentes. Por isso é conhecido como "Deus das Portas". Também era o deus das indecisões, pois na mitologia uma cabeça falava de uma coisa e a outra cabeça falava de outra coisa completamente diferente.