Criaturas Texto do catálogo da exposição individual no Museu Nacional de Belas Artes

Frederico Moraes
06 nov. 2001
Rio de Janeiro, RJ Museu Nacional de Belas Artes Exposição individual

2001 - Exposição Individual no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro


2001 - Exposição Individual no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro


2001 - Exposição Individual no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro


Jogo especular

“O tempo da obra de arte não é o que vivemos cotidianamente, sequencial, cronológico. Com suas obras, os artistas se comunicam, fora do tempo e do espaço, acima das circunstâncias e do contexto em que elas foram craiadas. Assim é que Jorge de Lima dialoga com as obras de Evandro, antevendo significados que permaneciam obscuros ao próprio escultor. Num dos seus poemas, Jorge de Lima propõe a eliminação de todo o supérfluo e todo o excesso para se chegar ao mínimo, à essência: ‘Tu queres ilha: despe-te das coisas,/ das excrescências, tire de teus olhos/ as vidarças e os véus, sapatos de/ teus pés, e roupas, calos, botões.’ Antecipa, assim, o reducionismo de Nus consequentes (1992), escultura em granito que descansa, limpa, enxuta, sobre a mesa de igual austeridade e solidez. Inversamente, Evandro como que revive no mármore (Barroca, 1991) a epifania poética de Jorge de Lima: ‘Não há paixão sem verso. Canta a tua dor e talha o alexandrino.’ Nesta releitura verbi-voco-visual e conjunta da obra dos dois artistas, multiplicam-se os olhares, que interagem ou se cruzam como num jogo espetacular, com resultados surpreendentes.

Diálogo entre as artes

Aproximações, analogias, transpirações reverses: o diálogo entre as diversas formas de arte sempre existiu, mas tende a se estreitar ainda mais nos dias de hoje, em que tudo se apresenta híbrido, sem fronteiras delimitadas, plurissensorial. Em suas análises e comentários, os críticos aludem ao cromatismo de certas composições musicais, à musicalidade de algumas pinturas ou ao vigor plástico de determinada prosa. Existem cores surdas e outras que gritam ou cantam. Conheço pintores que, em seus ateliês, colocam o ouvido junto à tela para escutar as cores. Hélio OIticica afirmou certa vez: ‘tudo o que faço é música’. Se, como disse Henri Focillon, ‘a possessão do mundo exige uma espécie de olfato-tátil’, para Bachelard, ‘(…) a mão, tanto quanto o olhar, tem suas rêveries e sua poesia. Nós devemos então descobrir os poemas do tocar, os poemas da mão que amassa’. E vai mais longe, ao referir-se a um cógito petrisseur. Num dos seus mais belos sonetos, ‘Dominio régio’, Jorge de Lima privilegia a sensualidade de um Tintoretto ou um Correggio contra o saber filosófico e científico, a erudição puramente livresca. E aqui, como num ato de magia propiciatória, o poeta que nos livros abandonara Platão, Homero, Sócrates, São Tomás de Aquino, Lutero e Voltaire emerge do passado, para contemplar, embevecido, no Grande nu de Evandro Carneiro, o ‘perfil divino da mulher’, que ele havia burilado em verso alexandrino.

Uma literatura desenhada

Mário de Andrade disse num poema: ‘sou trezentos, sou trezentos e cinquenta’, referindo-se às suas incontáveis atividades intelectuais e culturais. Jorge de Lima poderia dizer, mais modestamente, ‘sou cem, sou cento e cinquenta’, pois, como o modernista de 22, desenvolveu muitas atividades, porém, diferentemente de seu colega, em áreas pouco afins ou mesmo discrepantes. Com efeito, poeta, artista plástico, tradutor e professor de literatura brasileira, Jorge de Lima foi também médico e político. Extremamente precoce em tudo o que fez, publicou seus primeiros poemas com apenas doze anos de idade. Aos 21, concluiu, no Rio de Janeiro, o curso de medicina, iniciado em Salvador. Tinha 26 anos quando foi eleito deputado estadual pelo Partido Republicano, em seu estado natal, Alagoas. Vítima de um atentado político, decidiu transferir-se para o Rio de Janeiro, onde, efetivamente, começou a exercer a medicina, instalando seu consultório em edifício na Cinelândia. De volta à atividade política, foi eleito, pela UDN, para a Câmara municipal do Rio de Janeiro, que presidiu até 1950. E pelo menos uma de suas iniciativas como presidente teve larga repercussão no meio artístico. Refiro-me à sua autorização para que prosseguisse, no prédio da Câmara, em 1949, a primeira exposição de artistas internos do Hospital Psiquiátrico de Engenho de Dentro, que fora encerrada no Museu de Arte Moderna, ampliando o debate em torno das relações entre arte e loucura.

Poeta, não se deixou contaminar, ideologicamente, pela política, relutando mesmo em aceitar para o artista qualquer missão social. Porém, convertido ao catolicismo, influenciado, como tantos outros intelectuais e escritores, pela presença de Georges Bernanos no Brasil, lutou ao lado de Murilo Mendes pelo que ambos chamaram de ‘restauração da poesia em Cristo’. Desde então, para Jorge de Lima, a poesia seria sempre ‘(…) uma revelação de Deus, o artista como receptáculo dessa revelação. A poesia é incorruptível.’

Numa foto de seu consultório médico, na Cinelândia, as paredes aparecem abarrotadas de pinturas, indicando claramente o interesse do poeta pelas artes plásticas. Pintor bissexto, ele tambem esculpia e compunha, atividades que considerava, às vezes, como mero passatempo e, outras vezes, ‘uma condição essencial de minha vida total, verdadeira, absoluta’. De sua pintura, dizia ser ‘deficiente, imperfeita, autodidata, tão somente um complemento de minha poesia’. Não chegou, entretanto, à autocrítica severa de Cornélio Penna, que, inicialmente pintor e ilustrador, iria se tornar, mais tarde, um dos mais destacados romancistas brasileiros. Pouco depois de realizar sua primeira e única individual, em 1928, Cornélio Penna publica uma ‘declaração de insolvência’, na qual dá adeus às artes visuais, alegando que não queria se transformar num pintor-cobaia, que se limitava a pintar as ideias de um grupo. Em 1958, numa entrevista concedida a Lêdo Ivo, forneceu uma explicação mais sucinta e direta sobre os motivos de sua declaração de insolvência: ‘Tendo desenhado um quadro que chamei de Anjos combatentes, verifiquei com tristeza, que não era pintor, nem desenhista, nem ilustrador, porque fazia literatura desenhada’. Jorge de Lima e Cornélio Penna não foram, entretanto, exceções. Não são poucos, na história da arte brasileira, os exemplos de poetas e romancistas que atuaram, episodicamente, como artistas plásticos.

Em 1943, Jorge de Lima realizou uma série de fotomontagens, que foram reunidas em um livro intitulado, curiosamente, de Pintura em pânico, obra que coincide, não por acaso, com o período surrealista de sua poesia. Em ‘nota liminar’ estampada como apresentação da coletânea, Murilo Mendes sustenta que a fotomontagem ‘antecipa o ciclo de metamorfose em que o homem, por uma operação de síntese de sua inteligência, talvez possa destruir e construir ao mesmo tempo’. Mas insistindo no caráter liminar de sua análise, Murilo Mendes deixa em aberto a sugestão de se ‘pesquisar o modo pelo qual este livro de Jorge de Lima se insere na sua obra, estabelecendo a relacão do mesmo com seus poemas, romances, ensaios e tentativas de quadros’.

O trânsito de Jorge de Lima pelas artes plásticas incluiria ainda as ilustrações de Lasar Segall para os Poemas negros (1947), as gravuras de Eduardo Sued para o seu livro As aparicões (1966), que integrou a coleção Cem Bibliófilos, editada por Castro Maya, além de uma edição artesanal do poema ‘O mundo do menino impossível’ ilustrada pelo próprio poeta.

Em sua intervenção no II Congreso Nacional de Críticos de Arte, realizado em São Paulo, em 1961, Mário Pedrosa referiu-se pejorativamente às primeiras gerações de críticos de arte brasileiros, tachando-os de literatos, por conhecerem arte apenas pelas reproduções e de ouvir dizer, fazendo uma crítica de fundo literário. ‘A crítica profissional’, observa, ‘veio com a Bienal e foi só a partir daí que se começou a falar de elementos que se podiam analisar em si mesmos para depois coordená-los num conjunto’. Compreende-se a posição de Pedrosa, preocupado, então, em definir o espaço de atuação do crítico profissional e os critérios de abordagem da obra de arte. E sua atuação, como a de outros críticos, foi importante no sentido de definir um vocabulário específico para a crítica. Contudo, é preciso reconhecer que a crítica de arte brasileira recebeu, desde seus primórdios, a contribuição inteligente de escritores e poetas. Críticos oriundos da literatura, como Mário de Andrade, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, José Geraldo Vieira, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar, para citar apenas alguns entre dezenas, eram ou são possuidores de uma grande acuidade crítica e escreveram sobre artes plásticas com a maior competência.

A atuacão de Jorge de Lima como crítico foi pequena e discreta. Um bom exemplo é o comentário que fez da obra de Segall, por ocasião de sua polêmica exposição de 1943, no Museu Nacional de Belas Artes. Não divaga, não literatiza. Vai direto ao cerne de sua linguagem plástica: ‘[Segall] consegue, dentro de uma economia, de um racionamento essencial o máximo de força. (…) Há em sua pintura o valor pictórico propriamente dito: por acréscimo ele nos proporciona o social, o humano, tão indispensável no momento que passa.’

O quarto reino

Se não ousou usar o poema como suporte para a crítica de arte, como fez João Cabral, recorreu à própria poesia como tema, dissecando as circunstâncias que envolvem o ser do poeta e o fazer poético. O que pode fazer o poeta?, pergunta. E responde: pode ‘desarrumar as terras do mundo’, ‘arrumar sem limites de pátria’ , ‘derramar azeite no mar’, ‘plantar flores no topo dos montes’ e ‘trigo nos vales do mundo’, ‘abrandar os tufões dos espaços, acabar com os tiranos do mundo’, tudo isso pode o poeta fazer. Só não pode ‘extinguir a palavra de Deus, afastar a Verdade da Terra’.

O que Jorge de Lima diz num poema (‘Chamo as coisas com os versos que eu quiser, os mistérios, os medos, os três reinos e esse reino que eu vim reiniciar’) é a reelaboração poética de uma tese, formulada pelo poeta chileno Vicente Huidobro, segundo a qual a arte deveria ser considerada como um quarto reino, ao lado dos demais existentes na natureza – o vegetal, o animal e o mineral. ‘Se o homem subjugou para si os três reinos da natureza’, diz em 1916 o fundador do Criacionismo, ‘por que razão não poderá acrescentar ao universo seu próprio reino, o das criações?’

Uma das mais belas imagens esculpidas por Evandro Carneiro, o Ídolo caído (gesso, 1988), magnificamente estampada neste livro, pode ser vista como a síntese perfeita do longo poema Invenção de Orfeu (1952), cuja ideia central, nas palavras do próprio autor, ‘(…) é a epopeia do poeta olhado como heroi diante das vicissitudes do mundo, através do tempo e do espaço. É o drama da queda. Sem a queda não haveria história, não haveria epopeia. O poema é um momento de eternidade perdida que o poeta procura reconquistar.’

Dentro e fora da tradicão, dentro e fora da modernidade

A iniciativa do diálogo entre Jorge de Lima e Evandro Carneiro não foi do escultor, que até recentemente, como me confessou, desconhecia a obra do poeta alagoano. A iniciativa foi, como vimos, de André Seffrin, que, conhecendo a obra de ambos, intuiu afinidades insuspeitadas que a narrativa gráfica desenvolvida por Soraia Cals acabou por confirmar.

Alexei Bueno, introduzindo o leitor à obra completa de Jorge de Lima, no volume que lhe foi consagrado pela Nova Aguilar (1997), identifica quarto fases em sua poesia, a saber: 1 – neoparnasiana, em que revela influências de Olavo Bilac e Augusto dos Anjos; 2 – adesão ao Modernismo, com o poema ‘o mundo do menino impossível’, e a síntese do período alcançada com Essa negra Fulô (1928); 3 – conversão ao catolicismo, quando escreve A túnica inconsútil e, em parceria com Murilo Mendes, Tempo e eternidade (1935); e 4 – presença do Surrealismo e universalidade, com Anunciação e encontro de Mira-Celi e Invenção de Orfeu.

No último texto que escrevi sobre Evandro Carneiro, em maio de 1994, analiso sua escultura a partir de quarto abordagens. Na primeira, tomo de empréstimo o conceito de ‘realismo ideal’, formulado por Deoclécio Redig de Campos, durante várias décadas conservador-chefe do Museu do Vaticano. Seria a busca de um ‘equilíbrio estável entre forma e conteúdo’, a ‘coordenação clara de todos os elementos da obra de arte na harmonia do conjunto’. Boa parte da escultura de Evandro revela esta mesma beleza calma, límpida e mediterrânea, que encontramos nos momentos clássicos da história da arte. Evandro, como Jorge de Lima em sua poesia, situa-se ao mesmo tempo dentro e fora da tradição, dentro e fora da modernidade. Um apego ainda forte ao fazer artesanal recalca, no escultor, qualquer exacerbação experimentalista.

A segunda abordagem é a aproximação à arte negro-africana, através do Cubismo. A descoberta da arte negro-africana plos artistas modernos, no início do século 20, teve um impacto extraordinário no desenvolvimento da arte ocidental. O que impressionou o artista moderno na máscara ritual foi o poder de síntese, o caráter redutivo e fechado da forma. Esta presença negro-africana, reciclada pelo Cubismo, pode ser percebida em várias de suas peças, nas quais, tal como em Brancusi, recria a forma totêmica e o pedestal se integra estruturalmente à obra.

Na terceira abordagem, analiso três componentes do vocabulário formal do artista: fragmentação/ des-montagem, acumulação/ re-montagem e torsão/ simultaneidade de ângulos de visão. Com a fragmentação, Evandro des-monta a unidade tridimensional do corpo humano, dinamizando sua escultura e forçando uma apreciação não-figurativa do tema. Evandro verticaliza, deita, divide, soma, multiplica, empilha e enfileira a figura humana num jogo que parece inesgotável, resultando em surpreendentes rotacões de significado. A quarta abordagem é o erotismo.

Estas abordagens não se referem a fases ou períodos definidos. Tampouco indicam blocos ou unidades temático-formais. Estas diferentes características podem estar superpostas, às vezes de forma conflitante, em uma mesma peça. Tampouco indicam uma evolução linear no tempo de sua obra. Elas vão e voltam, mesclam-se em hibridismos, negando e afirmando um estilo. Ainda assim, e também porque outros críticos, como Marcos Lucchesi, indicam na obra poética de Jorge de Lima ‘uma direção multifária e polifônica’, ou por ter sido apontado como um ‘autor sucessivamente regional, negro, bíblico e hermético’, penso que não seria um despropósito relacionar, dialeticamente, estas quarto abordagens às quatro fases apontadas por Alexei Bueno. O binômio catolicismo/ África parece inviável à primeira vista, porque Evandro Carneiro jamais se apresentou como um escultor católico, sendo mínimas suas incursões em temas hagiográficos ou bíblicos. Contudo, pode-se contrapor a isso a observação de frei Bruno Palma, em texto sobre a arte religiosa de Portinari, de que ‘(…) é religiosa toda obra que, pela densidade ou força, nos fala do homem, dos seus dilemas, sonhos e inquietações. É lá, nessa profundeza, que se pode encontrar o religioso, porque lá se encontra o humano’. E mesmo considerando-se que a aproximação de Evandro à arte negro-africana ocorre exclusivamente pela via plástica, isto é, pela via da forma, cabe lembrar ainda que Alfredo Bosi e Roger Bastide referem-se, respectivamente, ao catolicismo sincrético, sertanejo e santeiro de Jorge de Lima e a uma combinação superior, em sua poesia, entre as heranças cristã e africana.

A mulher

Mas não se esgotou ainda o elenco de afinidades entre o poeta e o escultor. Na obra de ambos, a presença da mulher é dominante. A mulher e todos os atributos positivos que séculos de arte e História lhe outorgaram: beleza, perfeição, pureza, inspiração, santidade e sedução, o amor platônico e o amor carnal. Para Jorge de Lima, a mulher é sempre deusa, é a ‘musa intacta, inconsútil’, a qual recusa o nome de Eva ou qualquer ‘outro nome de mulher nascida’. Mas, e Beatriz? E Madalena? E Mira-Celi? E Liz, ‘estrela alvadia’ que lhe indicou o itinerário, vela e batel, porto e alegria?’ Quem, afinal, é Liz: ‘Musa ou atriz,/ anjo ou visão? Ou é a morte? / ou é vida inda uma vez?’.

Seria ‘por acaso a irmã do pastor/ amiga dos cães e das ovelhas?/ A que dançou no pátio do povo?/ A amada de todos, dançarina, / a de cintura esbelta e de pés ligeiros,/ de mãos suaves e de olhos claros,/ a que hipnotiza os ursos e distrai os homens, da Guerra?/ A poetisa?/ Seria a irmã do pastor que a gente entrevê nas outras mulheres?’ Deusa ou musa, ela é ‘a eterna bem amada que eu procuro’, ‘infanta ungida e santa’, mas cujos peitos e coxas ele ambiciona tocar. Jorge de Lima canta e louva a amiga, ‘querida minha, amada minha’, mas, também, a mulher sem nome, ‘silenciosa, não pertencida’, ‘a mulher infecunda’ e seu reverso, a que procria, ‘a mulher proletária – única fabrica/ que o operário tem’.

George Bataille já se referia à existência de elos entre os excessos místicos e os excessos eróticos. Ao representar santa Teresa, Bernini levou ao máximo essa tendência erótica do Barroco e da própria religião. Em êxtase místico, santa Teresa deixa o prazer percorrer todo o corpo, que se expande pelo planejamento, em ondulações gozozas irreprimíveis. Trata-se na verdade da mais ousada representação do orgasmo feminino em toda a história da arte. Convertido ao catolicismo, Jorge de Lima não reprimiu a sensualidade que perpassa em Anunciação e encontro de Mira-Celi e em A túnica inconsútil. Ao contrário. A metáfora do fogo, ou disto que Bachelard denominou de ‘fogo sexualizado’, está presente tanto em Jorge de Lima (‘Quando sentires tua carne incendiar-se/ e a labareda divina alterar no ar’) quanto em Evandro Carneiro, não apenas numa peça coincidentemente intitulada Labareda como em muitas outras, nas quais a danca do corpo, o ímpeto ascensional e as sinuosidades múltiplas e barrocas acabam por incendiar a estrutura, criando formas luxuriantes, voluptuosas, flamejantes, como escrevi no referido texto de 1994.

Na obra de Evandro, a presença da mulher é avassaladora. Esculpidas em mármore ou granito, modeladas em gesso ou bronze, as mulheres reinam absolutas. Elas aparecem sentadas, arqueadas, de perfil, em repouso, classicamente apolíneas ou dionisiacamente barrocas, maternais, mas também lânguidas e fogosas, deixando-se consumir em marmóreas labaredas. Às vezes, são apenas torsos, reclinados, bipartidos, em conjuncão, formando dípticos e trípticos, desfilantes, empilhados, como índices numéricos. Ou cabeças, com ‘fundidos cabelos’, cacheados, trançados, de perfil clássico, helicoidais, ou que se fragmentam, ainda mais, em ancas graciosas e seios que se multilicam onírica e magritianamente sobre o corpo. Mulheres: japonesas, africanas, tigresas, sabinas, tanagras, siamesas, Eva-serpente, Eco clamando por Narciso, Vênus, Danielle, Marcella, Melania, Sirena, Anne, Patrícia. Neste universo densamente feminino, o homem é pouco mais que um apêndice, ainda que desfrutando de poder e força física: generais, centuriões, guardiães de algum obscuro templo, Narciso – que, surdo aos apelos de Eco, contempla sua própria imagem no espelho d’água -, heliastas reunidos ao nascer do sol, e Apolo, Dédalo, e Ícaro, e Midas, e Netuno, inexoravelmente presos aos seus destinos de seres mitológicos. Escultor de estirpe clássica, Evandro aqui também cumpre o destino que já havia sido traçado por Jorge de Lima em conferência que pronunciou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1935; buscar ‘o mais alto plano poético, que é uno, invariável, adstrito aos grandes temas, pois somente estes podem originar obras duradouras’.

Magnificat

Walter Benjamin, em ensaio clássico, afirmou que o aparecimento da fotografia anulou a aura da obra de arte. Hoje, mais do que nunca, a criação plástica pressupõe a certeza da reprodução pelos diversos meios de comunicação – livro, jornal, fotografia, cinema, televisão, vídeo, CD, internet, etc. Esta divulgação rápida e massiva dos originais criados pelo artista modifica o entendimento da criação artística. Na verdade, seria mais correto dizer que a fotografia, enquanto técnica reprodutiva, agrega novos significados à obra de arte, ao mesmo tempo que, tendo alcancado sua autonomia como forma de expressão, cria sua própria aura.

Contudo, a apreensão de certas obras de arte ainda pede um contato direto. É o caso da catedral gótica, porque, nela, o significado reside nos efeitos da luz no seu interior, ou melhor, no caráter fluídico e transitório dessa luz, sua modificação constante. Uma catedral gótica não vive em sua estrutura, não vive da pedra com que foi construída, ela vive entre a morte e a ressurreicão da luz. É por isso que uma catedral gótica, diferentemente de um templo grego, jamais é apreendida de uma só vez. Ciente dessa impossibilidade, Serge Moulinier, o fotógrafo de L’Ordre ogival, livro de François Cali, elaborou um magnífico ensaio fotográfico com o intuito de mostrar a extraordinária mobilidade da luz no interior de uma catedral, o modo como ela afirma e nega o espaço. Ainda assim, Moulinier e Cali se reuniram uma vez mais, para realizar um novo livro, L’Ordre grec, demonstrando ‘a que perfeição pode alcançar a arte do livro, quando cada texto responde a uma imagem e a cada imagem um texto, quando uns e outros se juntam numa harmonia, cujo ritmo pertence tanto à poesia quanto ao grafismo’.

Este livro de Soraia Cals remete à tradição inaugurada por Cali e Moulier, que é a de, sem prejuízo da análise crítica pertinente, recriar a obra de arte com a ajuda da fotografia e do texto poético. Por seu caráter tridimensional, a escultura apresenta enormes dificuldades para a sua correta reprodução em livro. Assim, a alternativa foi criar uma narrativa, à semelhança dos filmes sobre arte, entrando e saindo do corpo da escultura pela via do detalhe e do fragmento, num processo de des-montagem e re-montagem do original. É certo que o filme sobre arte, hoje, segue por outros caminhos, depois de exaurir o modelo proposto por Luciano Emer, que, ao penetrar com a câmara diretamente no interior do quadro, eliminando a moldura, abriu enormes possibilidades de análise crítica da pintura, inaugurando, verdadeiramente, uma nova forma de crítica de arte. Este livro resgata a narrativa visual como forma de análise crítica, recolocando novamente em discussão o conceito de crítica como criação.

Tal postura, evidentemente, não está isenta de riscos, sujeitando-se à reação de uma crítica acadêmica, que apostou todas as suas fichas no comentário textual e na catalogação fria das obras. Para essa crítica conservadora, o maior risco será magnificar, fotográfica e poeticamente, a obra original. Ora, a história de uma obra de arte é a historia de seu autor e do contexto em que ela foi criada – os mecanismos individuais e sociais que a tornam legível, como ensinava Pierre Francastel – mas é, tambem, a história das sucessivas leituras que dela foram feitas e que o tempo vai agregando ao seu significado. Leitura que não se restringe, obviamente, ao texto, podendo assumir a forma de um ensaio fotográfico. Se, de acordo com a raiz grega, fotografar é ‘escrever pela luz’ e se a escultura tem sido, ao longo dos séculos, receptáculo da luz, que se expande sobre a superfície da material ou se esconde nos interstícios da forma, que se revela ou se esconde, dialeticamente, nos meandros e escaninhos da estrutura, a ponto de podermos afirmar que ela tem sido sua matéria-prima essencial, este é então um risco que vale a pena enfrentar. Um risco positivo que este livro veio confirmar.

Percorramos, uma vez mais, as suas páginas. Danielles: o fausto e a luxúria da forma barroca, que se monumentaliza em expansão horizontal. A versão surrealizante das Três graças, que se fundem num estranho ser, bifronte, ‘de um lado luz e de outro treva’, no qual, ‘entram os pés pela boca, mãos e olhos’, como se fosse a imagem de um sonho recorrente. Banhistas: seios túmidos, ofertantes, que um dia, talvez, tenham sido beijados pelo poeta. De repente, entre tanta forma lisa e brilhante, irrompe, na matéria corrugada do bronze, o Fragmento arqueológico, a atrair mais a mão que o olhar. E então, a quem pertenceu este pé, do qual vemos apenas os dedos tão graciosos? De que século, reino, nação ou tribo, de que deusa ou simples mulher do povo ele provém? E estas Quatro cabeças, de puro bronze, que depois de tanto tempo guardadas e mudas, em algum obscuro armário, também irrompem, em primeiríssimo plano, página dupla, em seu pungente lamento: ‘Ó lágrimas de prantos enxugados! / Ó cânticos herdados, ó memórias!’ Magnificat. Nas páginas que se seguem, novas cabeças, de mulheres e homens, com seu canto ou mudez, de Eco e de Narciso, e de Anne, introspectiva, em eterno solilóquio. E Chinó – estranho nome – cujos cabelos se projetam ousadamente sobre o pedestal, como sombra ou duplo de Maria Martins, que amou e foi amada por Duchamp. Sintonia perfeita: a dureza da Pedra, no entanto fundida em bronze, pesadamente plantada no chão da página, irremovível e imutável, e o poema que se constrói, pedra sobre pedra, em edifício sólido. No rosto plano, enigma insondável, ‘a loucura dorme inteira e sem lacunas’.

O genial Arthur Bispo do Rosário dizia que todo louco carrega consigo um cadáver. Livrou-se do cadáver pela via da arte, administrando, assim, sua loucura. O poeta de que fala Jorge de Lima libertou-se da loucura com a ajuda de um cavalo. Colleomelata. Nas tardes amenas, o cavalo, ‘recoberto de brasas e espinhos’, lia o mesmo livro que o poeta. Lambia cada página, apagando ‘a memória dos versos mais doridos’. O que se lia no livro, ‘era a loucura do homem agoniado/ em que o incubo cavalo se nutria’. Mas ao libertar o poeta do cadáver da loucura, o cavalo tambem se livra da lava que, como Prometeu, o queimava. E desde então, lavado pelo vento, impecavelmente branco, compõe com o poeta a mais perfeita simetria. E juntos, o poeta e o cavalo, podem, então, anunciar o mundo novo que amanhece.”