Texto do catálogo da exposição individual no Palácio do Itamaraty, DF

Wilson Coutinho
28 nov. 1995
Brasília, DF Palácio do Itamaraty Exposição individual

1995 - Exposição Individual no Palácio do Itamaraty, Brasília


1995 - Exposição Individual no Palácio do Itamaraty, Brasília


What should be without the sexual myth
The human reverie or poem of Death?
Wallace Stevens

“É possível uma erótica hoje? É possível sustentá-la com o horizonte comprimido pelo fim da representação e com a avalanche de teorias desconstrutivas desabando sobre todo o mundo cultural? É possível ainda suportar por mais tempo o pessimismo teórico que nos obriga à angústia e à incapacidade de não podermos mais nos alegrar com o visível? Provavelmente, estas meditações são do fim do século e de um século que soube pregar a todos nós as artimanhas do relativismo, para nos deixar desolados, sem o abrigo da razão? Estas reflexões nasceram, quase ao léu, à saída da casa de Evandro Carneiro, depois de ter visto um conjunto de suas esculturas. A questão mais pertinente era: é possível ainda hoje com granito, bronze, mármore, estes materiais até exageradamente clássicos, já tantas vezes cortado, cinzelado, moldado e modelado, enfim com toda a história destes materiais, é ainda possível uma erótica do visível?

Se supormos que sim, que a presença do corpo feminino ainda possa evocar o desejo da representação e que este desejo possa agradar, satisfazer ou emocionar, o trabalho de Evandro Carneiro é uma contribuição para o enriquecimento da ideia visual do corpo feminino. E daí, talvez, sob uma natural tensão, que a sua obra acabe por nos reiniciar ou nos reguiar para uma cultura em que fomos obrigados a esquecer ou em que deliberadamente nós resolvemos deixá-la de lado, como algo muito usado e que de repente tornou-se estranho diante de nossos olhos. Outra questão: pode o corpo da mulher ser ainda desejo da escultura? E este desejo pode ainda ser transmitido para o nosso desejo?

Essa pergunta lembra outra. Na década de 40, o crítico literário norte-americano Edmund Wilson perguntava se era ainda possível o verso. A crença era que não. Porém, os poetas souberam desafiar a incredulidade geral e mantiveram o verso como maneira de expressão até hoje, extraindo dele alta sensibilidade, coisa que parecia impossível devido ao esgotamento de seus recursos. A pergunta de Edmundo Wilson é hoje apenas uma curiosidade. Mas, ela nos devolve ao temperamento da arte na era pós-moderna, que fez renascer a arqueologia de todas as formas modernas, até mesmo a presence do corpo humano, principalmente na pintura. Este temperamento, contudo, passou ao largo das formas escultóricas e, na verdade, uma erótica do corpo feminino não foi nem pensada na pintura. Haveria, portanto, um entrave ao desejo? Uma impossibilidade tão forte que desvanecesse a menor vontade de pensá-la?

Na verdade, o trabalho escultórico de Evandro Carneiro está distante – e muito – do temperamento pós-moderno. Como escreveu o crítico Harold Rosenberg, o moderno criou a sua tradição, fazendo com que um tempo se estendesse diante da obra plástica, pontuando uma estilística, uma gramática ou uma norma. Os primeiros modernos avaliaram muito bem as dificuldades da escultura ou avaliaram o que ela deveria esforçar-se para ultrapassar ou mesmo ‘corrigir’ para adquirir uma autonomia. Em sua larga prática, a escultura era o monumento, a sacralização pública de um tema fixado pela História ou os seus herois. Um artista radical e excepcional como Rodin faria obras de encomenda como os Burgueses de Calais ou Balzac, ou seja, toda a sua habilidade, para não dizer genialidade, servia-se de uma ‘pré-figura’, como os críticos literários falam em um ‘pré-texto’, mas Rodin não era totalmente moderno para ser útil à geração de Picasso e de Brancusi, mesmo que aquelas esculturas encomendadas tenham escandalizado os comissários que as solicitaram para locais públicos. Rodin foi capaz de conceber uma erótica, talvez a mais fulgurante que temos na escultura depois do Barroco, mas ela pertencia a um código de transgressão avalizado pelo que havia de mais avançado em sua época. A sexualidade reprimida não era apenas um fato psíquico, mas também expressão do corpo. Quando a bailarina Isadora Duncan irritava-se com a neurastenia improdutiva dos jovens artistas que a cercavam, incapazes de fazerem uma obra, ela lembra-se da vitalidade, não só artística do velho Rodin, exemplo de um homem que poderia esculpir a expressividade corporal, com facilidade e sem neuroses. Mas para um escultor como ele não se tratava ainda de liquidar as lições de Michelangelo, artista que ele tanto admirava. A representação do corpo feminino ou do corpo humano, como ocorreu aliás em todo o Impressionismo, não estava expulsa do horizonte cultural de sua época.

Ao rediscutirem a ideia de monumento – os modernos não acabaram totalmente com ela – ao avançarem para as formas mais puras, mais plasticamente diretas, sem nenhuma ‘pré-figura’, tema ou história, os modernos foram capazes de cada vez mais se afastarem da representação do corpo humano, que o ‘reducionismo de Giacometti, as suas ‘construções transparentes’ de figuras humanas, acentuaram e apontaram para o fim de uma possibilidade de representação, mesmo que sua obra, ao contrário do puro ascetismo moderno e de sua neutralidade emocional, chegasse a possuir uma dramática carga inesperada.

O classicismo do moderno atravessa a obra escultórica de Evandro sem, contudo, abrir mão de seu espírito de representação como, aliás, ocorreu em boa parte das obras nas origens do cubismo. No ensaio de Mário Margutti, Módulos de Criação, Evandro evoca a influência de Archipenko, o da primeira fase, que introduziu nas suas figuras humanas geométricas, côncavos e vazios. É certo que esta influência possibilita que o artista – como se referiu Frederico Morais sobre o procedimento preliminar de Evandro – estruture sua obra a partir de ‘invólucros geométricos’. Sem polemizar, gostaria de lembrar que a estruturação a partir de elementos geométricos é comum na arte, mas dispor deles à luz, fazer da estrutura a própria poética da obra, abstraindo qualquer retórica alusiva trata-se, normalmente, de uma estética que desencantou o significado.

A obra de Evandro, na construção de sua poética, não eliminou, porém, o significado e, creio, não seria esse o caminho que seu trabalho deverá seguir, a não ser que o artista mude de temperamento. Ao contrário, é sobre a dura tensão, teórica e prática, advinda da escultura do pós-modernismo inicial, não este dos anos 80, ou seja, da presença sensível da estrutura, que como tal apresenta a materialidade pura como fundamento estético da obra e produto final dela, exprimindo-se através de uma retórica ascética, é, afinal, sobre esta tensão, que a obra de Evandro revela-se e faz aparecer a significação. Daí o seu cubismo primordial.

Daí a tensão necessária. De um lado há o historicismo da arte (não a sua História) que apregoa um telos, uma finalidade em seu desenvolvimento, uma concepção mais ideológica que determina, com grande ilusória, uma concepção terminal da obra de arte. De outro lado, o esgotamento de paradigmas formais, que elimina as repeticões na obra de arte. Dupla tensão que o trabalho de Evandro enfrenta para sustentar sua poética.

Esta poética trabalha com uma dupla força imaginária: a linha ascensional, que ergue a escultura de sua base para o infinito, como o granito Japonesa ou o mármore Sirena, ou até em séries como Índice, e a linha horizontal em que a escultura se alonga em repouso, fazendo a matéria espriguiçar-se sensualmente no espaço como podemos ver em obras como Suassuapara ou Noite e Dia. Estas linhas matrizes, que pertencem mais ao imaginário bachelardiano que freudiano, fornecem a ocupação especial dos trabalhos, de modo que a linha ascensional metaforiza-se na labareda como Sirena ou nos totens e a horizontal na ideia de descanso, tensão entre atividade e inatividade, entre impetuosidade e calmaria ou ainda entre a sexualidade como ereção e sua pacificação aconchegante.

Desta articulação originária, a poética de Evandro se desdobra em mais três aspectos essenciais: a curva que sensualiza a matéria, a montagem que multiplica os corpos, como por exemplo, o bronze Coluna e a fusão como ocorre em Três Graças e, mais radicalmente, em Noite e Dia. E com a fusão dos corpos, possivelmente vestígios da visão do ato sexual, vista do ponto de vista masculino, que, ao meu ver, é onde a obra de Evandro extrai a sua mais alta intensidade sensual. No mármore Barroca (e eis que o ‘geometrismo’ de Evandro encaminha-se para o estilo mais sensual da arte), puro gozo da linha curvilinear, fantasmagoria de desejo masculino sobre o corpo feminino e apreensão antipsicanalítica deste desejo, porque fundado no prazer do visível. Os vazados, os seios, os côncavos, as torsões servem para dar vigor plástico a esta poética que, parece não se encantar com uma hermenêutica do desejo. Tudo é clareza, sem zonas obscuras, com seus materiais objetivos que não solicitam a ambiguidade do espectador. Neste caso, o possível romantismo de Evandro, como observou Mário Margutti, cede diante da vocação do escultor para o classicismo. Mais ainda: a sua poética trava um embate, na linha de fogo da cultura ocidental, contra o desvanecimento do visível.

Diante deste trabalho, diante destes corpos, diante destas representações da mulher, algo inesperado acaba por nos interrogar para além destes materiais esculpidos, algo que vem do fundo, para além de uma exposição, mas presente através da lição destas obras: por que uma erótica nos escapa, como se alimentássemos a esperança de fugir de toda a sua carga, que para o bem e para a morte, nos traz de volta a vitalidade sem lógica da vida? Por que ela, quando tateamos ou estamos quase cegos de tanto ver, nos apela de volta?

E por que, ainda, como conforto de termos nascido para a percepção, para a ela retornarmos, como se a luxúria de ver, como falava Baudelaire, fosse a principal interrogação de nosso desejo?”