Texto para o folder da exposição individual na Galeria Ipanema

Wilson Coutinho
04 out. 1988
Rio de Janeiro, RJ Galeria Ipanema Exposição individual

‘A única traição é trair o desejo’
(Jacques Lacan)

O ateliê, na Barra da Tijuca, é ainda precário. Moldes, fragmentos de esculturas, ideias esboçadas no papel estão em um canto da casa. É verdade que algumas obras já se integram ao ambiente doméstico. Um bronze ao lado da piscina; uma experiência em granito na sala. Isto significa, de saída, que existe um começo. Paradoxalmente um longo começo. Onde o desejo deu a sua partida para chegar até esse ateliê, embranquecido pelo gesso, com lascas de uma obra espalhadas sobre uma mesa? No momento, isto pouco interessa. O que é um júbilo para a verdade – a verdade única e solitária do sujeito – é que o desejo agora habita duplamente o espaço imaginário e do real. Este longo começo é uma conversão. Agora, está diante de sua própria procura: errância, jogo, prazer.

Esta conversão, sem dúvida, não é tão dramática do que a que foi representada no filme Passageiro: profissão repórter, de Antonionni. Nas transformações do personagem interpretado por Jack Nicholson, que penetra no abismo, porque já não pode perceber como idêntica a sua personalidade, o novo mundo que irá enfrentar o livra, de fato, do tédio de uma vida em que não há erro, mundo de um profissional competente, onde o horizonte é o mesmo ordenado para a morte. Ao sair das convenções, o personagem vive no estado constante da ‘passagem’, condição sem abrigo, sem facilidades, renascimento diário e entrega passional ao destino. Evandro Carneiro fez uma opção desse tipo. Para quem o conhece no meio da arte, ele tinha uma carreira bem sucedida. Vendia quadros, comprava. Organizava leilões ou era chamado para desfazer dúvidas sobre a autenticidade de uma obra. Estava tão dentro do seu trabalho, que o leiloeiro Ernani acabou aconselhando a empunhar o martelo para seguir os lances dos leilões.

Para muitos, uma vida organizada, cujo único problema eram as oscilações típicas do Mercado em que trabalhava. Alguns artistas até poderiam, como é comum no meio de arte, achar que ele era um marchand indiferente ao ativo mundo cultural, inteligente e honesto, mas desligado das vivências mais autênticas da obra de arte. Evandro não era um companheiro de viagem, mas o sujeito simpático que cobrava ingresso. Na fantasia de muitos, estava rico. Na de outros, acumulava um vasto acervo em sua casa. Para o futuro – e na imaginação de muitos o futuro já estava feito – Evandro poderia viver, tranquilamente, de obras alheias, destino de marchand – e de um bom marchand.

De repente, alguma coisa explode. Um homem, na casa dos 40, muda tudo, transforma o jogo social da identidade, altera as próprias convenções de sua vida, vende a Bolsa de Arte, faz uma galeria, vai inaugurar uma exposição. Não, não pode. Há uma barreira. Não, não é a galeria que não vai bem; não é o mercado de arte que está em crise. Há alguma coisa que não funciona. O desejo diz: não é isto, não pode ser isto. Ei-lo, em 1986, entrando na Fundição Zani, saindo com alguns quilos de barro e, em casa, modelando, faz nascer três pequenas esculturas. E agora? E agora era o começo.

Não que tudo começasse com sua visita a uma fundição. Jovem, tinha frequentado os cursos do Museu de Arte Moderna, tendo como professores Ione Saldanha e Ivan Serpa. Depois, ingressava na Escola Nacional de Belas Artes. A ideia era ser pintor, mas Evandro também seguiu o curso de modelagem da profesora Celita Vaccani e ia ao seu ateliê, para aulas particulares. Mas alguma coisa interrompe o percurso que seria natural de um jovem artista. Ele vai trabalhar na Galeria Relevo, que marcou uma época sob o comando de Jean Boghici, e esse mineiro de Visconde do Rio Branco, órfão de um médico do interior de Minas Gerais, que precisava trabalhar para ganhar a sua vida, encontra, na galeria, gente mitológica como Di Cavalcanti. ‘Uma vez ele estava aborrecido com a filha que lhe pedira para juntar dinheiro’, lembra Evandro, recordação humana do pintor esbanjador e boêmio. Com o aprendizado na Galeria Relevo, Evandro seguiu a carreira de marchand.

Então estava tudo bem. Estava tudo errado. ‘Eu era bem sucedido porque trabalhava como um cão’, diz o artista. ‘Se parasse de trabalhar eu pensaria’. Alguma coisa podia mover a camuflagem: o tempo. Era com isso que Evandro contava. ‘Achava que poderia começar o trabalho de arte aos 60 ou 70 anos’, ele pensava. Em 86, na Fundição Zani, o tempo foi ao encontro de seu desejo. Foi, com modéstia, que Evandro iniciou-se na escultura. Na sua primeira mostra na GB, Evandro escreveu o catálogo, praticamente uma confissão pública de sua mudança de rota. Timidez e modéstia. Começou como um debutante, fiel a um estilo – hoje diríamos quase clássico que norteia seu trabalho – mas, fiel, sobretudo, ao desejo que o levara até uma fundição. No início, Evandro preocupou-se em dominar seu métier. Deu dois anos para isto, preocupado, principalmente, em captar plasticamente o corpo humano. Hoje ele já conhece o seu domínio. Foi necessário olhar a sua mesa de trabalho. Restos, afinal, de seu trabalho. Enfim, não tinha havido começo. Aquela mesa, no ateliê, sempre estivera lá. Esperando.

Wilson Coutinho
Outubro de 1988